As Causas da República no Brasil
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  • 15/11/2024

As Causas da República no Brasil

reflexões sobre 135 anos de questões ainda não resolvidas

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O Império do Brasil passava por momentos críticos nos anos que se seguiram ao término da Guerra do Paraguai. O país enfrentava uma série de questões de caráter institucional que levaram a última geração dos estadistas do Império a gastar muita energia na tentativa de debelar essas crises e manter a estabilidade e a ordem constitucional. Infelizmente, dado a acúmulo de circunstâncias desfavoráveis que se apresentavam contra a estabilidade da Constituição de 1824, veio essa a ser derrubada por um golpe de Estado, em 15 de novembro de 1889, quartelada essa, movimento “contra as instituições”, como se diz atualmente, que pôs fim a monarquia e estabeleceu a República – de forma provisória, pelo Decreto nº 1 – constitucionalmente consagrada depois, na Constituição republicana de 1891.

É sabido que as “causas” que levaram a declaração da República foram, em sua maioria, de ordem constitucional. São, em resumo, essas as crises que levaram ao fim do regime monárquico e do reinado de D. Pedro II: questão militar, questão religiosa, questão servil, questão federal. Todas contribuíram indiscutivelmente para o advento da República e todas tiveram origem em contradições no texto da Constituição, ou em contradições entre o texto e a realidade, ou na exegese contraditória de artigos, algo que os cidadãos de hoje entendem bem – mesmo os que não possuem formação jurídica – por perceberem a disfuncionalidade do modelo constitucional de 1988 e as contradições que existem entre a expectativa do texto e a realidade brasileira.

No tocante a ‘‘questão militar”, significou, além da “politização” de uma parte de nossas Forças Armadas, o efeito da ausência de enquadramento satisfatório da posição do Exército relativamente ao presidente do Conselho (chefe de governo) que era a autoridade nascida do jogo dos partidos e evidentemente partidária. Dessa insubordinação militar para com alguns líderes de governo, surgiram incontáveis inconvenientes, agravando-se a questão entre os oficiais e o governo, dando início à era das questões militares, que, a rigor, continuam abalando, periodicamente, o país. Naqueles tempos de liberalismo clássico ainda não se tinha no texto constitucional “incompatibilidades” como as que existem hoje certas funções públicas nem se percebia a necessidade de manter as instituições de Estado, como as forças armadas, afastadas do jogo eleitoral e protegida dos interesses político-partidários.

O próprio Rui Barbosa, já no período republicano constatou que foi a “questão militar” a que que criou o maior impasse político no império, pondo fim à monarquia. Ironicamente, os conflitos entre as forças armadas e os governos prosseguiram com maior intensidade com a implantação do presidencialismo pois, extirpado do texto constitucional de 1891 a figura do Poder Moderador, árbitro do jogo político nos casos de conflitos entre poderes, não restou na ordem jurídica quem pudesse colocar freios aos ímpetos políticos da classe militar nem conter a instrumentalização das forças armadas pelos partidos e políticos civis. Se no período do Império os militares reclamavam da subordinação dos militares aos “políticos”, com a instauração da República, essa subordinação foi mais intensa.

O que a história republicana tem nos mostrado é que, quando da ocorrência de conflitos entre os militares e os governos, aumentam os riscos de infantilidade e de quebra da ordem constitucional. Essas circunstâncias, agravadas que foram pela doença e a omissão do Imperador em debelar as insubordinações militares para com o governo constituído – somado aos preconceitos que os militares tinham de um terceiro Reinado tendo a Princesa Isabel com Imperatriz – criaram todo o conjunto de circunstâncias que provocaria a causa material e, mesmo, eficiente do 15 de novembro, ajudada, embora, por outros fatores.

Depois vem a “questão servil”. Haverá necessidade de acentuar-se a importância da escravidão na vida social e econômica do Império? Haverá necessidade de assinalar a contradição imensa, infinita, entre a liberalíssima declaração de direitos que vinha na lei fundamental de 1824 considerando “todos iguais” e o fato de grandes multidões de brasileiros não gozarem, nem ao menos, dos elementaríssimos direitos naturais e civis, sofrendo todo tipo de violação de sua dignidade ao serem considerados como se “objeto” o fossem? Essa contradição entre o Brasil legal e o Brasil real, semelhante a tantas contradições que persistem ainda hoje em nossa democracia e que tanta descrfenca’geram, por vezes, nas instituições democráticas, nos permitem ter uma ideia das dificuldades que a resolução da “questão servil” gerou aos estadistas que, com sinceridade, buscavam por fim a essa chaga da sociedade brasileira - existente ainda nos anos finais do Sec. XIX - ao mesmo tempo que pensavam em como equalizar isso com os interesses de tantas forças contrárias a emancipação dos escravos, como, por exemplo, o setor agrícola que era a força motriz da economia nacional.

Em seguida vem a “questão religiosa”. A Constituição de 1824, muito liberal em tudo, conservava o absolutismo onde menos se justificava: a sujeição da Igreja ao Estado. Desde o período colonial, estávamos sob o poder espiritual do rei de Portugal, na sua qualidade de senhor do padroado e do Grão-Mestrado da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ora, tal situação, que trazia para o seio do Estado a solução de questões de ordem espiritual, prejudicava a liberdade de profissão de outras crenças religiosas ao mesmo tempo que, pelas séries de restrições que impunha aos próprios católicos (validação de documentos pontifícios dependentes do beneplácito do Imperador, nomeação de bispos pelo Poder Executivo, restrições à liberdade dos católicos) dava a esses uma impressão de “falsa segurança”.

A última das “questões” célebres foi a federal. A necessidade de descentralizar-se o governo tornava-se cada vez mais acentuada à proporção que, com o correr dos tempos, agravava-se a complexidade da estrutura geográfica brasileira. Se ainda hoje percebermos o quão sufocante é a ação do governo central na vida de todos os brasileiros, o que aumenta a distância entre o “país real”, de geografia dispersiva, e o “país legal”, centralizado, fortemente centralizado, imaginemos como isso não era evidente no século XIX em que as províncias queriam governo próprio, decorrência natural da tomada de consciência das novas força sociais que o desenvolvimento econômico das províncias estava produzindo. Se o Império fora o governo das províncias pela nação, a República seria o governo da nação pelas províncias.

Por último, duas outras causas, estas de cunho ideológico, deram a sua contribuição para o fim do Império: O caráter “mais” igualitário do regime republicano e a “exceção imperial” na América. Disse um líder do povo brasileiro: “Há na alma brasileira uma irresistível tendência igualitária. Ela é inimiga resoluta dos privilégios econômicos, das distinções étnicas, das diversidades sociais”. Ora, numa realeza, a situação da dinastia é, de certo modo, privilegiada. No Brasil o poder dos Braganças vinha da “livre aclamação dos povos” e estava sujeito à lei, em todas as suas circunstâncias, convindo recordar que não haveria sucessão ao trono sem o reconhecimento do herdeiro pela Assembleia geral (artigo 106). Era, pois, uma distinção social prevista em lei e tendo em vista o bem público. Não obstante, existia uma família privilegiada; ora, nem todos sabiam que tal privilégio vinha do povo, pelo povo e para o povo e que o Imperador era menos um soberano que o delegado da soberania nacional. Do ponto de vista jurídico um detentor do maior de todos os direitos políticos existentes na Constituição, apenas.

O fato, porém, é que havia tal privilégio e que se achava, pelo menos na forma, em contradição com a tendência igualitária do povo brasileiro, ao passo que na República todas as funções de governo estão em teoria abertas a todos, sem exceções provindas do nascimento; são direitos adquiridos pela atividade de cada um, em lugar de direitos inerentes à pessoa. O problema está em saber-se se tal concessão aparente à igualdade seria benéfica à liberdade: pois não andamos nós ultimamente considerando grande conquista liberal a atribuição da imparcialidade política ao governo? Não se considerou um ideal de imenso valor democrático um governo investido de “uma função neutral e moderadora”, como definiu o Gen. De Gaulle quando da elaboração da Constituição Francesa de 1958, que muito se assemelhava no tocante a figura do pode Moderador, a Constituição do Império do Brasil de 1824? No tocante a imparcialidade, ninguém haverá de discordar que as monarquias apresentam maior neutralidade do chefe de estado com relação ao jogo de interesses políticos dos partidos, do qual não depende para chegar ao poder. Talvez algumas desigualdades jurídicas permitam maior liberdade, enfim.

 Mas também tinha a questão da “exceção americana”. O clima política no continente era o de novas repúblicas. “somos da América, queremos ser americanos” diziam muitos adeptos da propaganda republicana no Brasil. O fascínio ante o progresso dos Estados Unidos da América e a vergonha de sermos o “patinho feio” dos regimes constitucionais favorecia a ideologia republicana em detrimento da monárquica. Curiosamente, quando do fim da monarquia, o presidente da Venezuela, Rojas Paul disse que “Se acabado la única república que existia en América, el Imperio del Brasil”, constatando que, se éramos uma exceção, o éramos no sentido positivo, haja visto termos fugido da vala comum das repúblicas latina Américas que ao longo do século XIX foram marcadas por golpes, guerras civis, corrupção e instabilidade constitucional.

Ao observarmos as causas da “Proclamação da República”, datados 135 anos de seu início, conseguimos olhar com mais serenidade para os fatos e perceber que a maioria dos problemas foram resultado de uma dificuldade de adaptação do texto constitucional para as novas necessidades. De modo interessante se percebe também que muitos dos problemas percebidos como “causas” não só “não” foram solucionados durante a República como tiveram seus efeitos perniciosos ampliados. Muitas das questões relacionadas aos conflitos entre poderes e instituições permanecem sem solução ainda nos dias atuais. Isso nos leva, ao menos, por dever de justiça, diminuirmos a crítica ácida que se faz, muitas vezes, a monarquia e ao Brasil Império, vistos equivocadamente por muitos como uma “idade das trevas”, ao passo que a República teria instaurado a “idade da luz”. Não é assim e o clima belicoso que se vive em nossa democracia, contrário em grande parte às atuais instituições da República, o demonstra.

Por isso, é necessário reconhecer que o Brasil Império teve papel fundamental na consolidação de uma ideia de nação e que a Constituição Imperial teve papel importantíssimo e inovador na adoção de uma separação de poderes funcional que causa inveja a organização de poderes de muitas das constituições republicanas dos nossos vizinhos latino-americanos, sempre enredadas em conflitos intermináveis entre executivo, legislativo e judiciário. Talvez seja chegada a hora de, reavaliando as causas do 15 de novembro, refletirmos se muitas das dificuldades enfrentadas pelos estadistas do Império quando da queda da monarquia não são semelhantes - ou até mesmo idênticas - as dificuldades que enfrentamos no Brasil de hoje. Talvez se olharmos para o passado com um olhar mais sereno e benigno, possamos ter humildade de olhar para o nosso texto constitucional atual e procurar adaptá-lo às novas necessidades e circunstâncias da sociedade brasileira, sob pena da ordem constitucional de 1988 não ter uma vida muito mais longa. A Constituição de 1988 teve um papel fundamental na retomada da democracia no Brasil mas, ainda estamos longe de vivermos em um Estado de Direito e em uma República plenamente legítima aos olhos da população. E regime político sem legitimidade, já nos mostra a história, não para de pé.

Por Mateus Wesp