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Durante décadas, parte expressiva da esquerda brasileira sustentou um discurso sobre criminalidade e segurança pública que se afastou da experiência comum do povo. Inspirado em categorias marxistas e em leituras dialéticas da sociedade, esse discurso via o crime não como uma violação moral ou jurídica, mas como uma reação estrutural: o criminoso seria, antes de tudo, vítima do sistema. O ladrão, o traficante, o jovem armado — todos seriam sintomas de uma ordem social injusta, e o verdadeiro culpado seria o Estado capitalista, que marginaliza e exclui.
Essa interpretação nasceu de uma intenção moral legítima — a de compreender o sofrimento dos pobres e denunciar desigualdades —, mas acabou se tornando uma ideologia que nega a realidade e dissolve a responsabilidade. Ao enxergar toda conduta delituosa como produto da miséria, a esquerda construiu um discurso em que o infrator é inocente e o sistema, sempre culpado. Em nome da compaixão, dissolveu-se a noção de justiça; em nome da crítica social, enfraqueceu-se a autoridade. O resultado foi o que vivemos hoje: uma sociedade refém do medo, em que a liberdade se tornou um privilégio de quem pode se proteger.
A crise de segurança no Rio de Janeiro nesta semana — marcada pela megaoperação nos complexos do Alemão e da Penha, com dezenas de mortos — tornou esse choque entre discurso e realidade evidente. As comunidades que há décadas serviram de pretexto para teorias sociológicas de “vitimização estrutural” hoje clamam pela presença do Estado. O povo quer polícia, quer ordem, quer paz. A população pobre não é refém do “capitalismo”, mas do crime organizado. E o discurso que insiste em negar isso se torna, ele próprio, cúmplice da desordem.
O caso do Rio expõe a contradição fundamental do pensamento de esquerda sobre segurança: sua visão ética é compadecida, mas sua visão política é ingênua. Ao substituir a responsabilidade pela explicação social, o discurso marxista se distancia da antropologia realista que está na base do direito e da política. Desde Aristóteles, sabemos que a vida em comunidade exige leis que ordenem o convívio e punam o injusto. A liberdade não nasce do caos, mas da ordem. Como recorda Tocqueville, o primeiro bem de um povo livre é a segurança, porque sem ela não há participação, nem trabalho, nem esperança.
No plano teórico, o que está em jogo é a relação entre causa e ordem. As teorias críticas da criminologia — especialmente as de matriz marxista — enfatizaram a etiologia social do crime: pobreza, desigualdade, exclusão. Já o realismo político e jurídico — da tradição aristotélica a Lon Fuller — lembra que toda comunidade precisa de normas eficazes e autoridade legítima. A explicação sociológica sem a estrutura jurídica é impotente; a repressão sem justiça social é tirânica. O equilíbrio exige ambas: causas tratadas por políticas públicas e consequências enfrentadas pela lei.
Mas, ao longo dos anos, o discurso progressista preferiu a narrativa do ressentimento à construção institucional. Criticou a polícia, mas não reformou as corporações. Condenou as prisões, mas não propôs alternativas eficazes. Romantizou o “jovem infrator”, mas ignorou as vítimas — que são, na maioria das vezes, os próprios pobres. Ao fazer do criminoso o novo “oprimido”, a esquerda perdeu o senso de justiça compartilhada que sustenta o Estado de Direito.
O episódio do Rio é, portanto, mais do que um fato policial: é uma crise de paradigma. A sociedade brasileira redescobre, pela dor, que liberdade e autoridade não são opostos, mas complementares. O povo entende, intuitivamente, o que a ideologia esqueceu: que não há liberdade onde impera o medo, nem igualdade onde o crime governa. O Estado que se omite deixa de ser republicano; e o governo que relativiza o crime renuncia à própria soberania.
Politicamente, esse erro tem preço. O eleitorado das periferias, cansado da retórica da vitimização, começa a migrar para lideranças que falam em segurança, responsabilidade e lei. Mesmo que Lula mantenha capital simbólico, a esquerda como projeto social perde tração onde o realismo moral prevalece. É possível que, nas eleições municipais e proporcionais, o voto popular se incline cada vez mais a favor de candidatos do centro e da direita — não por conservadorismo ideológico, mas por instinto de sobrevivência.
O realismo político ensina que a legitimidade nasce do contato com o real. Quem nega a experiência concreta do povo — o medo, a violência, o desejo de ordem — perde autoridade moral. A esquerda, se quiser continuar relevante, precisa reencontrar esse ponto de verdade: compreender que a justiça social não exclui a autoridade, e que a compaixão só é virtuosa quando não dissolve a responsabilidade.
O jovem que rouba não é apenas um produto da pobreza; é também um sujeito moral. O traficante não é apenas vítima da exclusão; é autor de uma escolha. A política que ignora isso deseduca, porque nega a liberdade humana em nome de um determinismo social. O Estado, por sua vez, tem o dever de agir: garantir a presença nas comunidades, oferecer oportunidades, mas também aplicar a lei.
A tragédia do Rio de Janeiro, com seus mortos e suas contradições, deve servir de advertência: sem ordem não há liberdade, e sem autoridade legítima não há justiça. O desafio brasileiro é superar tanto a indiferença moral da repressão cega quanto o sentimentalismo ideológico da vitimização. A verdadeira política — ensinava Aristóteles — começa quando reconhecemos o homem como ser livre e responsável. E é nessa base que se constrói, novamente, o sentido republicano da convivência.