“the communication Of the dead is tongued with fire beyond the language of the living.” T. S. Eliot
No artigo anterior, abordei a relação entre a obediência às boas normas da gramática e a vida política – o exercício da cidadania: ser capaz de compreender normas, preencher formulários, fazer petições. Esta é, todavia, ainda uma visão muito reduzida acerca do papel da gramática, cuja importância, para muito além das normas da sintaxe, carece do bom uso também das normas da semântica.
Este é, aliás, exatamente o cerne da luta de Sócrates contra os sofistas, ilustrado no Górgias: quando pela linguagem o homem não transcende a si mesmo, para alcançar algo universal e verdadeiro, ela acaba-se por traduzir-se (ou trair-se) em instrumento de manipulação para proveito próprio, auto-adulação, auto-gratificação e, portanto, tirania, em detrimento de outros. A relação entre essas duas categorias – auto-congratulação e tirania – foi explicitada por um outro discípulo de Sócrates; menos conhecido, porém, que Platão: Xenofonte.
Em seu diálogo Hieron, o personagem que dá nome ao título, tirano de Siracusa, em diálogo com o poeta Simônides, relata, em primeira pessoa, as agruras a que estão sujeitos aqueles que exercem a tirania. O próprio desequilíbrio do gênero de vida que adotam os tiranos, queixa-se, o leva a buscar satisfação no entretenimento, exemplificado, no seu caso, pelo exagero nos temperos da culinária, nos falsos elogios, dentre outros. Quando uma pessoa possui um gosto corrompido, apenas o que é desmesurado – o falso elogio, o tempero agressivo – pode satisfazê-la.
O filósofo alemão Josef Pieper, em sua obra Abuse of Language, Abuse of Power, caracteriza o entretenimento como o mais genuíno território do modo de discurso intitulado lisonja sofística. Sua característica principal, esclarece Pieper, consiste não em um mero desejo de agradar ao próximo, dirigindo-lhe um elogio, que, talvez, quem sabe, seja exagerado; mas no desejo de, por meio de palavras laudatórias, procurar influenciar, manipular o interlocutor, para que este sirva aos seus próprios desígnios.
Esse tipo de lisonja, portanto, é um elogio que oculta, no fundo, uma ameaça. Trata-se de um elogio condicional, formulado, por exemplo, das seguintes
maneiras: nós, que somos liberais, não podemos deixar de apoiar a liberdade de expressão no caso da exposição do Queermuseu, ou do Goethe Institut – ou, ainda – como pode uma pessoa tão estudada acreditar em Deus?
Na política, elas são apenas uma forma dissimulada das mesmas palavras que saíram da boca dos fariseus, endereçadas a Pilatos: “- Se libertas a este, não és amigo de César!” Trata-se de uma exortação que tem por objetivo principal constranger a pessoa, colocando-a entre a autoridade da sua consciência, e o poder da multidão – encabeçada ou não por um César, pois, continuam os fariseus: “todo aquele que se faz rei, é inimigo de César!”
Essa ameaça – mais ou menos velada –, ocorre não apenas ali onde há um poder centralizado, mas em qualquer lugar onde haja uma claque, ou um grupo de pressão, e pode tomar outras formas menos sutis, como a difamação, a exposição a ridículo e a redução de alguém a nada. Sua melhor ilustração é justamente a gravura do frontispício do Leviathan, de Thomas Hobbes 1. Nela, sob a famosa figura do homem coroado, cujo corpo é composto por uma multidão de seres humanos, tem-se, à esquerda e à direita do título, respectivamente, duas colunas opostas. Na primeira, figuram um castelo e uma igreja; na segunda, uma coroa e uma mitra episcopal; na terceira, um canhão e raios de luz; mas é a quarta que mais chama atenção: de um lado, armas; de outra, garfos bifurcados e trifurcados, em cujos dentes estão escritas palavras: Syllogismos; spiritual/temporal (cuja base traz a palavra Dyllema); direct/indicrect. Por último, estão representadas de um lado uma batalha e um concílio. A isso, comenta Carl Schmitt que, segundo a doutrina exposta por Thomas Hobbes nesse livro, “tanto conceitos como distinções são armas políticas”.
E não é nada surpreendente que esta última frase esteja contida justamente no livro que promoveu a mais elaborada defesa do Absolutismo na Europa. Afinal, como disse o próprio Pieper, “o abuso de poder político está fundamentalmente conectado com o abuso sofístico da palavra”, e irá acontecer onde quer que o discurso público se torne independente das noções de verdade e realidade. No caso de Hobbes, isso é uma decorrência natural de sua adesão explícita ao nominalismo, corrente filosófica surgida no século XIV, que afirma que as palavras não designam nada de realmente presente nas coisas, mas são apenas modos totalmente contingentes criados pelos homens, para designar, coletivamente, várias coisas que são totalmente diferentes, segundo alguma conveniência daqueles que tomam parte nessas convenções.
Uma palavra que se refere a uma realidade que concebe o ser de maneira equívoca, como é o caso do nominalismo, e que, portanto, afirma que o ser é qualquer coisa, só pode se prestar a equívocos. Afinal, segundo o nominalismo, apenas entes individuais são reais. Ele, quando aplicado ao domínio das humanidades, tem consequências desastrosas, pois é justamente quando os seres humanos são tomados como meros indivíduos, que principiam a se tornar mais facilmente sujeitos a caírem presas de um coletivo qualquer, classificados segundo o intento de um grupo de pressão ou de um tirano.
Apenas um pensamento que encare o ser humano não como mero indivíduo (isto é, de uma maneira meramente negativa, in-divíduo), como um qualquer, mas como alguém singular (palavra cuja raiz latina, remete por sua vez a duas palavras mais antigas, do Indo-Europeu, que designam ‘um todo’, ‘algo integral’, syn – ghlos) é capaz de promover uma real valorização da dignidade da pessoa. Com o mesmo prefixo, a palavra ‘símbolo’ designa, a seu turno, justamente aquilo que permite aos seres humanos se comunicarem: um objeto inteiro formado a partir de duas metades que se encaixam. O seu contrário é, por sua vez, designado pelo termo ‘diábolos’, aquele que acusa, que faz confusão, que causa discórdia.
Esse caráter destrutivo e diabólico do projeto niilista dos nossos tempos foi muito bem expresso no comentário de MacIntyre: “ ‘Eu receio’, escreveu Nietzsche, na sua Götzendämmerung, ‘que não estejamos nos livrando de Deus, porque ainda acreditamos na gramática’, ou seja, numa concepção de linguagem que representa uma ordem de coisas por meio de um esquema conceitual e de uma identidade e diferença lógicas. Portanto, a acusação […] é não somente que o teísmo é em parte falso porque ele exige a verdade do realismo, mas que o realismo é inerentemente teísta. ” Assim, o cuidado da linguagem é, na verdade, a salvaguarda da própria dignidade do homem contra as garras do Leviatã, seja em sua forma habitual, seja quando transmutado em uma das suas muitas facetas, como aquela de Moloque, ídolo consumidor de vidas humanas inocentes, como testemunha o mundo inteiro esta semana, diante do caso Alfie Evans.