Educação para quem?
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  • 24/04/2018

Educação para quem?

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Outro dia, ao responder a um comentário sobre uma postagem em uma rede social, iniciei com a observação de que ele estava quase totalmente desprovido de pontuação e de que sua ortografia também continha muitos erros. Tratava-se apenas de uma ressalva; afinal, quando as mensagens contêm muitos erros de pontuação, seu sentido nem sempre fica claro, e erros de ortografia também podem prejudicar a compreensão. Isso foi encarado por alguns como uma manifestação de arrogância e de desprezo pelo “povão”. Nada mais distante da verdade.

A clareza é, como disse Ortega y Gasset, a cortesia do filósofo; mas é também a cortesia do professor, do pai, da mãe, do jurista, e também do político, porque, para parafrasear um que fez sua carreira neste mesmo estado, no são emprego da linguagem não há lugar para figuras ocultas, e, infelizmente, nem sempre a ausência de concatenação alcança aquele nível de absurdidade que torna um discurso digno de riso.

Aqueles que encaram o zelo pelo uso da linguagem como sinal de arrogância deveriam se indagar: não estará do meu lado a arrogância? E aqui não vai nenhuma provocação em especial a ninguém, apenas um convite à reflexão. E esta não diz respeito à capacidade de escrever nem ao modo de falar das pessoas, em si mesmas, mas às disposições de vontade daqueles que se utilizam da linguagem como um todo.

Afinal, a diligência ou o desprezo no uso da linguagem não constituem uma exclusividade desta ou daquela classe. Há muitas pessoas de parcos recursos e que buscam se expressar, no falar e no escrever, com capricho. Há outras, porém, de muitos recursos que simplesmente escolhem desprezar as normas da boa comunicação, e deixar ao próximo, seja ele quem for, o esforço de compreendê-lo ou não.

Insuflar resistência a normas que devem ser comuns a todos – não apenas as gramaticais – refletem, acima de tudo, uma recusa em se comunicar, em se auto-transcender, em participar daquelas discussões acerca do bom e do mau, do justo e do injusto, do benéfico e do nocivo, que, como observou Aristóteles, na Política, são justamente o que nos distingue dos demais animais. Não surpreende, portanto, que aqueles que não querem se comunicar por meio de palavras para comunicar-se aos demais, acabem por terminar se expressando de maneira bestial: com gritos, urros, grunhidos e, nos casos mais extremos, mordidas, socos e pontapés.

Noutras palavras: buscar meios de comunicação mais universais, primeiro por meio da própria linguagem de que se faz uso, e em segundo lugar por meio de normas mais universais ainda, trata-se de uma postura de humildade, de abertura ao mundo, de reconhecimento da própria limitação e inferioridade; uma abertura ao outro, e também àquilo que nos é superior.

Deste modo, propor aos menos favorecidos a resistência a normas comuns a todos, embora possa parecer um ótimo pretexto para insuflar um ódio de classes àqueles que se encontram nessa condição, revela, antes, mais um apreço por essa condição em si por parte dos que advogam tal causa, do que um desvelo pelas pessoas que nela se encontram. E isso pode ser dito mesmo de um ponto de vista de política e cidadania. Afinal, conforme argumentou Theodore Dalrymple, no primeiro artigo do livro “Não com um estrondo, mas com um gemido”, privar as pessoas das devidas competências em compreensão e expressão escrita e oral significa privá-las dos meios pelos quais ordinariamente é possível o exercício da cidadania: compreender normas, preencher formulários, encaminhar reclamações, etc.

Mas não se trata apenas disso: descobrir uma língua, nem que seja a sua própria, significa acessar uma chave que permite a alguém não apenas comunicar-se com os outros, mas consigo mesmo, expressar, com claridade e propriedade, tudo aquilo que vai dentro de si: suas aflições, anelos, anseios e aspirações. Privar os pobres ou ignorantes do acesso ao aprendizado da linguagem significa, portanto, privá-los do acesso ao próprio tesouro interior que, como seres humanos únicos e irrepetíveis, levam dentro de si.

O que daqui se depreende, portanto, é que o desprezo às normas comuns da linguagem – tenham disso consciência, ou não, aqueles que o fomentam – tem por fim último exatamente o mesmo que se apontou no artigo anterior como sendo aquele das ideologias totalitárias: a desumanização. Este, porém, ocorre, como esclarece Josef Pieper, em um pequeno grande livro, intitulado “Abuse of Language, Abuse of Power” não por violação das normas sintáticas da linguagem, mas das suas normas semânticas. Esse assunto, porém, terá de ser reservado para um próximo artigo.

 

Imagem: Laurent de la Hyre - Alegoria da Gramática - National Gallery (Londres) - Óleo sobre Tela (1650).

Por Mateus Wesp