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A imagem de Dom Pedro II com a pergunta “E a República, como vai?” não é apenas uma provocação histórica: é um diagnóstico sobre a nossa formação política e institucional. Todos os anos repetimos a liturgia do 15 de novembro, mas raramente enfrentamos a verdade sobre o modo como a República nasceu — e sobre como esse nascimento explica muitos dos impasses que ainda nos acompanham.
A Proclamação da República não foi resultado de um pacto nacional, de um debate público ou de uma maturação política. Foi um golpe militar improvisado, conduzido por um marechal hesitante, apoiado por setores insatisfeitos do Exército e por um grupo reduzido de civis. Não houve plebiscito, não houve consulta popular, não houve representação de fato. Rompeu-se abruptamente com uma ordem que, com suas virtudes e defeitos, vinha ampliando direitos, consolidando instituições e formando um país estável.
O Império — com todos os seus problemas — havia construído continuidade, cultura política, responsabilidade administrativa e um sistema de governo coerente. A República, ao nascer de forma atabalhoada, rompeu essa continuidade sem oferecer nada robusto em troca. Como observou João Camilo de Oliveira Torres, a transição de 1889 criou um país “sem fidelidade institucional, sem continuidade histórica e com excesso de improviso político”.
O Brasil começou sua vida republicana carregando aquilo que em teoria política chamamos de defeito de origem: a ausência de legitimidade fundacional. E ordens políticas que começam assim tendem a buscar legitimidade não nas instituições, mas na força, no carisma ou no voluntarismo. Isso explica muito da nossa trajetória desde então.
A República prometeu participação, mas entregou personalismo. Prometeu cidadania, mas produziu clientelismo. Prometeu estabilidade, mas inaugurou ciclos recorrentes de instabilidade. Prometeu modernização, mas se apoiou em improvisos sucessivos, sem uma cultura constitucional sólida que pudesse dar sustentação às mudanças.
Como ensina Cézar Saldanha Souza Júnior, quando a legitimidade de origem é frágil, toda a vida política passa a girar em torno de crises, remendos e lideranças personalistas, porque falta precisamente aquilo que deveria ser o fundamento de tudo: um consenso institucional.
A pergunta mais honesta que podemos fazer não é se os líderes foram bons ou ruins, mas se as instituições que construímos foram capazes de impedir que líderes ruins fizessem estragos e de permitir que líderes bons deixassem legado. A resposta, infelizmente, é evidente: o problema não são as pessoas, é o modelo político que adotamos e nunca revisamos.
Desde 1889, repetimos o mesmo ciclo: messianismos políticos, salvadores da pátria, rupturas constitucionais, crises entre poderes, centralização excessiva, hipertrofia do Executivo, federalismo assimétrico, um presidencialismo que não conversa com a realidade social nem com o nosso pacto federativo, e uma crônica incapacidade de formar instituições duradouras.
Como lembrava Manoel Gonçalves Ferreira Filho, não existe democracia material onde os poderes não têm limites reais e onde a política depende de personalidades, e não de regras estáveis. Dom Pedro II aparece, assim, não como símbolo de retorno ao passado, mas como símbolo daquilo que perdemos: continuidade, responsabilidade institucional, senso de Estado e visão de longo prazo.
Ele representa o contrário do improviso que marcou a Proclamação. Sua pergunta — “E a República, como vai?” — ecoa não como nostalgia, mas como convocação ao exame de consciência institucional.
Depois de 135 anos, ainda não fizemos aquilo que precisava ter sido feito na origem: reconstruir nossas instituições de modo maduro, responsável e estável. O Brasil precisa discutir com seriedade o sistema de governo, o equilíbrio entre os poderes, o pacto federativo, a estrutura do Estado de Direito, a formação cívica, a responsabilidade fiscal, a profissionalização da administração pública e a cultura política que desejamos.
Como já ensinou Barzotto, sem prudência institucional o direito vira teatro e a política se transforma em conflito moralizado, incapaz de produzir bem comum. Nossa crise não é apenas moral, econômica ou eleitoral. É uma crise estrutural, enraizada no modo como começamos a República e nunca revisitamos seu fundamento.
A verdade é simples: a República ainda está respondendo pelo modo como nasceu. A pergunta continua necessária e incômoda porque ainda está sem resposta. E a República, afinal, como vai? Vai como sempre foi: esperando que realizemos, finalmente, a obra institucional que nunca tivemos coragem de fazer.