É possível falar em “ideologia de gênero”?
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  • 22/11/2018

É possível falar em “ideologia de gênero”?

Ideologia1

A aparição do termo ‘ideologia’ no vocabulário da humanidade é um acontecimento relativamente recente. Ele data, mais exatamente, da passagem do século XVIII para o XIX. Foi então que o barão Antoine Destutt de Tracy (1754-1836) o cunhou, para, inspirado nos escritos de Locke (1632-1704) e Condillac (1714-1780), designar uma nova ciência: a ciência da formação das idéias a partir dos sentidos, que haveria de servir de substituto a toda metafísica.

Em sua obra Éléments d’ideologie (1ª edição, ano IX do Calendário Revolucionário Francês, 1801 d. C.), esse autor apresenta sua nova ciência como uma parte da Zoologia. Ela pretendia explicar a formação de ideias no homem “como observamos e descrevemos uma propriedade de um mineral ou de um vegetal”. Concebida no auge do prestígio da física de Newton (1643-1727), ela pretende descobrir a origem dos conhecimentos humanos segundo um modo de formação meramente mecânico, como se o ser humano fosse um autômato, relegando a metafísica, ciência dos princípios e dos fins, “ao número das artes da imaginação”.

Evidentemente, tais concepções partiam de uma série de pressupostos mecanicistas. O mecanicismo, porém, não era obra exclusiva de Newton. Antes dele, Hobbes (1588-1679) pretendera submeter toda a ciência política a uma série de postulados mecanicistas. A esta ideia de uma Ciência Política concebida como uma ciência exata, construída matematicamente, Leo Strauss atribui o nome de ‘doutrinarismo’. Este é apenas outro nome para a “ideologia” ou, como chamou Michael Oakeshott, “racionalismo na política”.

Vê-se, portanto, que essa “ciência”, por pretender explicar o ser humano a partir do mesmo paradigma aplicado aos animais, quando não aos vegetais ou aos objetos inanimados, obviamente se constitui como uma grande ameaça à dignidade do homem. Desde Bacon (1561-1626), de quem Hobbes fora secretário, ela se constitui com o suposto intuito de proporcionar poder sobre a natureza para “toda a humanidade” (scientia propter potentiam). A despeito disso, a pessoa que adere a tal concepção de ciência dificilmente a vê como o mero efeito de impressões mecanicamente encadeadas, mas como uma atividade dotada de propósito – de desfazer as ilusões em que chafurdam os pobres mortais, as pessoas comuns, ou algo parecido.

Porém, não se pode dizer o mesmo de sua visão a respeito dos outros. O cientificista seiscentista pensa que a ilusão é sempre dos outros, acompanhado apenas de uma certeza: de que pensa; logo existe. Acorrentado a seu subjetivismo, sua tendência é de projetar a imagem de autômato sempre sobre o outro e, portanto, de submetê-lo a seus desígnios; ao mesmo tempo em que pretende tornar a ciência um objeto igualmente acessível a todos, tende a recusar-lhes a liberdade e encerrá-los numa cadeia de pensamentos desenvolvidos mecanicamente, isto é, em um mundo em que propósitos de atingir uma perfeição possível e harmoniosa à natureza, segundo as causas finais, são retratados como quimeras.

Em suma, o ideólogo da ciência moderna – não o cientista, que reconhece seus limites, mas o cientificista – pretende livremente encerrar os outros na mesma cadeia que forjou para si: a das idéias claras e distintas, derivada de um funcionamento puramente passivo do intelecto, que as geraria de maneira mecânica e as encadearia de maneira necessária, da mesma forma que a engrenagem de um relógio trabalha para marcar as horas.

Essa visão elude o inexorável fato de que o ser humano é sobretudo livre, e sempre age por um propósito. Ela começa a extirpar as finalidades da natureza, e termina por extirpá-las (pois também somos seres naturais), do ser humano. Seu propósito geral consiste justamente em destituir tudo de propósito, e em convencer o ser humano de que já está tudo mecanicamente pré-determinado, e que a este resta somente esforçar-se por cumprir esse destino fatal. Foi assim que Marx (1818-1883) pôde conceber o fim da história como a necessária ditadura do proletariado e convencer milhões a lutar por esta causa. Obviamente, boa parte das pessoas que agiam segundo as diretrizes dos partidos comunistas viam a si mesmos como agentes livres, e sua ação como dotada de propósito.

Toda ideologia é, portanto, por definição, autocontraditória, pois ela supõe que não há finalidade, mas apenas fatalidade, ao mesmo tempo em que propõe a realização de tal fatalidade como uma meta a ser alcançada, como um norte, em suma: ao mesmo tempo em que se esforça por assumi-la como um propósito de ação para o ser humano. Este não deveria mais se orientar na sua ação pelas idéias de um bem, de uma perfeição a realizar, mas, ao fim e ao cabo, lutar por submeter-se mais ainda às forças, às potências, às pulsões, supostamente irrefragáveis, que agem sobre si.

Neste sentido, por guiar-se por impressões, por sensações, sem a mediação de uma forma, isto é, de uma perfeição a realizar, a ideologia constitui-se, por isso mesmo, como uma patologia, pois pretende trabalhar imediatamente a partir dos elementos das sensações (pathos), das paixões. Aliás, o vocábulo paixão vem do latim passio(-nis), correlato ao termo grego pathos, e que designa, justamente, a parte passiva, dos sofrimentos do ser humano. Daí que a ideologia busque sempre se basear nos recalques e ressentimentos das pessoas para proliferar na sociedade, como uma erva daninha, que multiplica e perpetua conflitos. A partir disto, pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que a autoproclamada “teoria de gênero” não passa de uma ideologia. Pelo mesmo motivo, como tal, ela está, obviamente, permeada de contradições.

Seus promotores propõem, como tratamento para a disforia de gênero uma “transição” de sexo, o que significa o máximo de intervenções técnicas – químicas e cirúrgicas – sobre o corpo do paciente. Antes, tal patologia, como afecção psiquiátrica, era definida como a própria sensação de estar no corpo inadequado; agora, contudo, ela é definida com o desconforto que se experimenta por conta da primeira sensação, encarada como tão normal quanto qualquer outra, neutralizando-se a definição da doença, e removendo a referência à compreensão do desenvolvimento do próprio sexo como uma finalidade natural a ser cumprida, portanto, uma perfeição moral a ser buscada pelo indivíduo e fomentada pela sociedade. Neste sentido, ela impõe à própria ciência médica um critério totalmente subjetivo – o sofrimento do indivíduo – sem atentar para as causas formais da doença e da saúde: a conformidade ao funcionamento normal de um ser humano. A doença é reduzida, portanto, ao seu sintoma: um desconforto, dentre tantos outros.

Porém, pensar que a neutralidade é possível, nessa matéria, seria ingênuo: nos Estados Unidos e em outros países, ativistas dessa ideologia têm incentivado que essa “transição” seja feita o quanto antes, com bloqueadores de puberdade, que podem causar perda de massa óssea e esterilidade perpétua, dentre outros efeitos colaterais permanentes, atirando os pacientes numa montanha-russa emocional, devido à ação dos hormônios. Contudo, evidências sugerem que uma considerável parte das crianças diagnosticadas com disforia de gênero acabam por superar o quadro, após a chegada da puberdade, algo que os próprios bloqueadores hormonais impedem de ocorrer, precluindo, assim, o que seria uma solução natural da situação. E este último termo significa, na linguagem do senso-comum, dar certo. Para quem quer que esteja contaminado por uma tal mentalidade, entretanto, a saúde torna-se patológica, e a patologia, saúde. Para eles, diante da chance de que, após algum tempo e com a terapia adequada, o desenvolvimento da sexualidade de uma pessoa dê certo, prefere-se a certeza de que dê errado.

O estudioso norte-americano Ryan T. Anderson resume, em um parágrafo, a postura dessas pessoas:

“Ativistas da ideologia de gênero tendem a ser intransigentes em suas exigências, porém sua concepção de mundo está permeada de contradições. Ela sustenta que o ‘eu’ verdadeiro é fundamentalmente separado do corpo, mas insiste que a transformação desse corpo é essencial para a que a pessoa se sinta completa. Ela associa uma noção de identidade de gênero verdadeira a uma série de atividades e disposições estereotipadas, porém surgiu de uma filosofia que afirma que o gênero é um construto social.  Ela promove um subjetivismo tacanho segundo o qual os indivíduos deveriam ser livres para fazer o que quiserem e definir a verdade como queiram; ainda assim, ela exige uma conformidade forçada ao credo dogmático do transgenerismo.”

Nas mentes dessas pessoas, implantar sua ideologia é uma questão de justiça, a ser satisfeita mesmo em detrimento de todo o tecido relacional, institucional e intelectivo de uma sociedade. Não lhes interessa que a presença de um homem em um banheiro de mulheres as incomode; não lhes interessa que uma pessoa seja obrigada a agir contra a sua consciência para agradar os sentimentos dos outros, chamando uma mulher por um pronome masculino ou um homem por um pronome feminino; não lhes interessa sequer que uma mulher trans (porque é assim que deveria ser chamado) possa enganar outra, assumindo uma aparência de homem induzida por hormônios e cirurgias, para relacionar-se eroticamente com ela. Com efeito, a tal ponto chega a sandice desse movimento, que alguns ativistas mais tresloucados dessa ideologia manifestam em redes sociais até mesmo a pretensão de proibir pessoas de discriminar outras, para fins de relacionamentos afetivos, com base na sua sexualidade biológica.

Essa tendência tem que ser revertida imediatamente, sob pena de que não só o desenvolvimento sexual e afetivo de pessoas com disforia de gênero seja embaraçado, mas também o de tantos quantos conviverem em um sistema que obriga a reconhecer um sentimento alheio como determinante da verdade objetiva, tornando, a longo prazo, a vida em sociedade inviável, fazendo que a inteligência humana seja perpetuamente prejudicada pela petulância daqueles que querem calar a boca das pessoas comuns, as que insistem em afirmar: - O imperador está nu, e ele não é uma imperatriz!

 

Neste vídeo, a presidente do Colégio Norte-Americano de Pediatria explica a gravidade da situação:

Por Mateus Wesp