Por volta do ano mil, havia uma mescla de temor e esperança nas pessoas ante a “volta eminente de Cristo”. O homem medieval pensava por demais na morte, e o próprio carnaval, na época, possuía um tom manifestamente sinistro, numa confusa mistura de atitudes, como demonstram certas práticas que ainda chegaram até nós, de procissões entre carnavalescas e funéreas. Mas o homem medieval, essencialmente cristão, não encarava a morte com desespero - temia a morte, algo que todos tememos mas temia, muito mais, o pecado.
De qualquer modo, o homem sempre viveu atemorizado. Medo de uma ou de outra coisa, pelos riscos que o rodeiam a cada passo o frágil da vida humana. Para o personagem Riobaldo, da obra “grandes Sertões Veredas”, de Guimarães Rosa, “Viver é muito perigoso”. Viemos ao mundo chorando e morremos, muitas vezes repletos de pavor. Todavia, se a angústia e o medo sempre acompanharam a vida humana, nunca houve época em que esses trações estivessem tão acentuados.
Mas, se o homem sempre viveu angústias mortais provocadas pela precariedade da vida humana, nunca houve época em que esta angústia existencial se acusasse mais aguda e generalizada do que a atual.
É tamanha a insegurança do homem moderno que isso veio perturbar a sua saúde mental - as clínicas estão cheias de doentes, muitos e muitos vítimas do mêdo, da angústia. Ninguém se sente seguro: nem o rico se considera solidamente instalado na sua riqueza - vive temores mortais de perdê-la - nem o pobre tem a certeza de que a sua pobreza permanecerá dentro dos mesmos quadros que conheceu. Além de sofrer objetivamente mais, além de sentir-se por assim dizer esmagado pelo peso da monumentalidade escorchante da vida moderna, o mendigo não sabe se vai viver, sempre, a seu modo - não é uma pessoa definida num quadro de relações estáveis como os velhos mendigos das cidades antigas, com nome conhecido e fazendo, por assim dizer, parte da sociedade, mas, sim, restos, dejetos da vida social.
Esta crise de insegurança, que atinge a todos e envenena as relações, possui três causas principais, uma subjetiva e duas objetivas. A causa subjetiva proveio da vida moderna. Da desilusão presente naqueles que acreditaram, desde o Congresso de Viena, que o mundo havia entrado em uma era de paz perpétua, um progresso retilíneo incapaz de ser perturbado que, ao se depararem com os tempos obscuros do inverno totalitário que varreu a Europa - deixando em seu rastro todo um cortejo de misérias - perceberam as condições brutais em que as novas gerações se viram submetidas, desvinculadas de quaisquer reservas morais como as que existiam nos antigos. O choque provocado pelo fim da crença no progresso que manifesta resultados ainda hoje, já que o temor pelo futuro jogou a humanidade no mais completo desespero.
Das causas objetivas, uma é de ordem econômica. E economia, que outrora fundava-se em bens concretos e realidades pessoais - um comerciante tinha seus fregueses certos, sempre os mesmos; o artesão sabia para quem trabalhava e o agricultor vendia na cidade, às mesmas pessoas, o produto da terra – hoje funda-se no crédito, na impessoalidade, nas compras por aplicativos e transferências eletrônicas. As relações são abertas, instáveis, livres. Produzimos para fregueses hipotéticos, e estamos em relação com todos. As pessoas se acham envolvidas nas malhas da vida econômica sem nem o saber. E, como conseqüência, um fato ocorrido na Rússia, pode atirar na miséria e no desemprego milhares de pessoas no Brasil. Um homem pode deitar-se rico, hoje, e amanhecer pobre - e tudo sem qualquer ato ou gesto de sua parte - pela simples força do mecanismo das condições gerais da vida econômica globalizada.
Por fim, a outra causa do medo existente em nosso tempo dá-nos a bomba atômica: podemos destruir o mundo, por obra de nossas mãos, temor esse que René Girard salientou na obra “Rematar Clausewitz”, na qual afirmou que, ou a humanidade se encontra, ou irá auto-destruir. Antes, falava-se em destruição do planeta por um castigo de Deus – ninguém imaginava que o fim do mundo poderia vir por ação do homem, detentor de um poder que nenhum Faraó chegou a sonhar. E, diante disto, diante de um poderio desta ordem, como não viver tremendo?
Mas, se o homem vive, hoje, em estado de pânico latente, tanto assim que se multiplicam as formas de seguros, desde os de navios contra os perigos do mar, até de artistas que asseguram a sua voz ou os seus encantos, é justo reconhecer que, sempre, o homem procurou premunir-se contra os perigos que lhe rondam a frágil existência.
E se observarmos a história jus-política brasileira, veremos que ela sempre buscou garantir a segurança: Isso se comprova com a nossa primeira Constituição do Império, que garantia os direitos civis e políticos dos cidadãos, na base da "liberdade, da segurança individual e da propriedade", no art. 179, o mesmo podendo ser dito do famoso Código Criminal do Império, que capitulava, no título II da parte terceira, crimes contra a segurança individual, dividindo-se em crimes contra a segurança da pessoa e vida, contra a segurança da honra, contra a segurança do estado civil e doméstico etc....A ideia, aliás, de que a conservação da segurança dependia da Justiça está no glorioso Código de leis das Ordenações Filipinas que para os povo de língua portuguêsa, representa configuração do Direito, como o Código Justiniano para os povos cristãos.
"E como a Justiça é virtude não para si, mas para outrem, por aproveitar somente àqueles, a que se faz, dando-se-lhes o seu, e fazendo-os bem viver, aos bons com prêmios, e aos maus com temor das penas, donde resulta paz e assossêgo na República . . . "
Dom Filipe, dominando meio mundo, tinha em mira pois, paz e a conservação da Res Publica, como sua preocupação pessoal, assim como Augusto, tinha como meta estabelecer a segurança por meio da Pax Romana.
A primeira condição de que haja segurança para as pessoas e as famílias é a existência da ordem na sociedade. Sem uma autoridade segura de si, capaz de manter a ordem na sociedade, de implantar a justiça, nenhuma segurança pode existir. Se a autoridade está sujeita a flutuações, se não consegue impor a sua lei sobre os particulares, se não sabemos quem manda e qual a fonte da lei reina a confusão, não temos a vida garantida, não há segurança para a vida econômica. Exemplo clássico desta situação dá-nos o triste panorama da França durante a guerra dos Cem Anos; antes uma guerra civil do que uma guerra entre as duas nações, pois o problema estava em saber quem era o rei de França, e, também, qual a área sujeita à coroa francesa e, por último, quem mandaria, se os Armagnacs ou os Burguinhões. Nesse caos de suseranias em choque, quando ninguém sabia a quem obedecer e os bandos armados talavam as regiões, foi preciso que Joana D’arc, uma virgem inspirada por Deus, mostrasse o caminho a seguir.
Para existir, portanto, ordem numa sociedade, e pois, este mínimo de segurança sem o qual nada se pode fazer, importa que haja o Estado e que este possua autoridade. Nesse sentido, a atual realidade brasileira – mostra-nos o caso do Rio de Janeiro – precisa, antes de tudo, reafirmar a autoridade do ordenamento jurídico sobre as condutas individuais. Sob pena de aumentar o temor e a insegurança dos cidadãos.
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